É PORTO, É NACIONAL, É O REDUTO DA CULTURA DO TOCANTINS
Por Nívea Ayres
A história de Porto Nacional começa no período em que a navegação era essencial. Fundada em 1738, a localização da cidade, às margens do rio Tocantins era estratégica, o que favoreceu as trocas comerciais com Belém do Pará e a busca pelo ouro nos povoados vizinhos, enquanto ainda pertencia ao norte goiano.
Emancipada politicamente há 162 anos, a cidade atingiu a marca de 285 anos em 13 de julho, celebrando também a honraria histórica de ser reconhecida como a capital cultural do estado do Tocantins. A razão por trás desse título está relacionada com a chegada dos franceses dominicanos, no final do século XIX e início do XX.
As missões da religião católica, tanto dos padres quanto das freiras, proporcionaram à comunidade portuense uma educação única, o domínio de línguas estrangeiras e, consequentemente, o desenvolvimento da cultura local.
Permeada pela cultura artística, religiosa e linguística, Porto Nacional tornou-se referência, atraiu estudantes de outras regiões e destacou-se em várias áreas, como medicina. Muitos filhos da cidade retornaram depois de concluírem suas formações.
Foto: Nívea Ayres

Entrevista com Everton dos Andes
O cantor, compositor e historiador, Everton dos Andes, ressalta que a atual posição como capital da cultura é resultado de décadas de construção histórica. “Foi essa construção secular, histórica ao longo de décadas e décadas que transformou o Porto Nacional em capital da cultura. Às vezes as pessoas confundem e acham que Porto é capital da cultura por conta dos feitos dos atuais artistas ou dos atuais intelectuais. Não é nada disso. A gente só luta para manter esse título que vem de muito longe”, explica.
Monsenhor Jones Pedreira, escritor e integrante da Academias de Letras e Artes de Porto Nacional (Alaporto), da mesma forma, destaca a soma de esforços e fatores que conferiram à cidade “um título sem igual, incluindo expressões culturais, artísticas, econômicas, sociais e religiosas”.
A junção de vários aspectos contribuíram para que a cultura fosse efervescente. O Monsenhor recorda que “a música sertaneja, por exemplo, foi se aprimorando, chegando a ter coisas impressionantes”, relembra. “Porto Nacional é o resultado da soma de vários esforços, de tantas pessoas, passou a ser conhecida como a capital cultural do norte goiano”.
Na atualidade Porto Nacional também passou a se destacar economicamente e segundo Jones Pereira, “graças ao esforço de jovens, crianças, adultos, professores, profissionais e aquilo que hoje mais caracteriza Porto Nacional, o agronegócio, a cidade vem se destacando no cenário nacional do nosso tempo”.
A luta para manter viva essa trajetória também passa pela a arquitetura das ruas e casarões localizados no centro histórico. A influência dos padres está representada no maior marco cultural e simbólico da cidade, a construção da Catedral Nossa Senhora da Mercês, localizada no mesmo lugar da antiga capela reservada a padroeira.
A catedral foi finalizada com o apoio dos moradores depois de uma década, no ano de 1904, o atribuiu ainda mais grandiosidade ao monumento, que está situado em meio a região central.
Preservação e tombamento
Como resultado dos interesses de preservação, o centro histórico de Porto Nacional foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 2008. A área contempla cerca de 250 edificações, incluindo largos, vias e casarões. Algumas das construções de maior destaque são a Catedral Nossa Senhora das Mercês, o Seminário São José, o Caetano, antigo Colégio Sagrado Coração de Jesus, comandado pelas irmãs dominicanas, o prédio do Abrigo João XXIII, a Cúria Diocesana, a Casa de Câmara e a Cadeia.
Imagem: Nívea Ayres

Casas situadas no Centro Histórico estão em processo de restauração, as obras contam apenas com modificações na parede e telhados.
No mesmo ano do tombamento, as últimas duas edificações na sede do Museu Histórico e Cultural, que abriga peças doadas por famílias antigas, contando a história do município, foram incorporadas ao patrimônio histórico arquitetônico de Porto.
Recentemente, o espaço que inspira as produções culturais e artistas passou por uma revitalização. O centro histórico e os seus moradores receberam a atenção dos alunos de Engenharia da Universidade Federal do Tocantins (UFT), que em parceria com o IPHAN e a Prefeitura de Porto Nacional, revitalizaram algumas propriedades o que culminou com o lançamento do Canteiro Modelo de Conservação da cidade.
Ao longo do tempo, a cidade passou por várias transformações, até mesmo motivadas pelas perdas significativas. Como é o caso do espaço de convivência e apreciação musical, propiciado pelo coreto da praça Nossa Senhora das Mercês, em frente a Catedral. A cobertura foi demolida na “calada da noite” pela gestão de 2001 por motivos estéticos, alegando a modernização do espaço comunitário, mesmo sob os protestos da população.
Mas nada foi capaz de abalar o título de cidade histórica que Porto carrega, o tempo passa mas os aspectos estéticos dos templos, o passado construído pela herança de danças e tradições populares, confere à Porto Nacional, o título de capital cultural, garantindo que as gerações futuras valorizem e compreendam de qual lugar saiu a riqueza que se tornou um ponto de referência no Tocantins.
A diversidade cultural do município
A rica cultura de Porto Nacional é moldada por uma variedade de manifestações populares, incluindo música, festas juninas, rituais, representações artísticas e religiosas. Essa formação resulta da influência de diversos saberes, como o dos europeus, indígenas, povos africanos, costumes dos migrantes nordestinos, nortistas e sulistas.
Atualmente a nova motivação que impulsiona o crescimento econômico é o agronegócio, que tem agregado, outras intervenções que, também agregaram significativamente a construção social e cultural da identidade portuense.
Personagens que auxiliam a diversidade
Um dos pontos altos de Porto Nacional é a culinária típica, petiscos como o bolo de arroz da Baixinha e o arroz com pequi e peixe na telha da Tia Júlia, são conhecidos no Brasil, e agregam valor aos aspectos de cultura, de lazer, auxiliando a produção do turismo.
A indústria cultural tem favorecido o aparecimento de bandas, compondo um mercado para os jovens que se destacam pela música, fenômeno que começou no século XX. Se destacam neste trajeto, os grupos musicais estimulados, por Frei José Maria Audrin, depois com o grupo de Jazz Cruzeiro do Sul, banda formada por negros e liderada por Argemiro Pereira Assunção no saxofone, desde 1930.
Os anos 60 e 70 evidenciam a participação do Mestre Adelino, que tem influenciado mais jovens a trilhar o mesmo caminho. A partir desse período, outros músicos e compositores despontaram na cidade, marcando presença estão os músicos e compositores Everton dos Andes, Elizeu Ribeiro, Célio Pedreira, conhecido médico, cronista e poeta, assim como Sitõe, Bey Ayres e Torres. Em resumo, o local tem “uma leva de artistas que construíram o cancioneiro popular”, comenta o artista Everton, depois de listar alguns nomes da música atuantes na região.

Everton recorda a presença marcante da capoeira que desde os anos 70 é liderada por figuras como o mestre Gamela, que mantém o grupo de Capoeira Raízes, um dos mais estruturados do estado.
A capoeira é uma forte representação da cultura afro-brasileira que continua impressionando as pessoas que assistem as apresentações, uma dança, que segue a cadência de passos de luta. As expressões nas artes plásticas, visuais e no teatro também são importantes traços da cultura popular, representada, principalmente pelas folias de Reis, do Divino, onde os povos tradicionais são importantes representantes da formação da identidade local.
O Lugar da Súcia
Para o artista portuense, Everton dos Andes, a ‘Suça’ é uma das principais manifestações culturais do estado. A dança serviu de inspiração para o Primeiro CD do arista de música solo, intitulado “Suciologia”, neologismo criado a fim de designar o estudo da suça. “Foi dessas folias que eu, por exemplo, criei o projeto Suciologia, que é um estudo da suça.

A suça é a nossa maior expressão identitária e uma das maiores expressões da cultura do Tocantins, hoje reconhecida e muito popularizada entre os jovens, entre as crianças e entre os adultos. A nossa preocupação, assim que foi criado o Tocantins, era que essas tradições não se perdessem frente ao crescimento do estado ”, enfatiza.
A suça integra o folclore de diversas cidades, como Santa Rosa do Tocantins, Natividade e no giro da Folia do Divino Espírito Santo, em Monte do Carmo. A dança inclui homens e mulheres, tem origem africana e domina os espaços acompanhada de cantos, sons de pandeiros, tambor e viola.
A “suça” foi reconhecido pelo IPHAN, como patrimônio cultural, o que assegura que a dança não acabe caindo no esquecimento.
Festas religiosas e cultura popular
“Porto Nacional também se destacou, não somente pela cultura, mas também pela religiosidade”, conta o monsenhor Jones Pedreira, que nasceu na cidade, estudou no Seminário São José e foi consagrado sacerdote na Catedral de Nossa Senhora das Mercês, onde também celebrou a primeira missa, em 1978.
Morador do centro histórico, próximo a igreja, pôde acompanhar a importância das principais festas religiosas, o monsenhor fez realizou um grande trabalho em prol da missão católica, vivenciou a construção histórica de Porto Nacional, como foi um grande pesquisador da cultura e da história de Porto Nacional.
A Catedral
A história da Catedral remonta à criação de uma pequena capela dedicada a Nossa Senhora das Mercês. O Padre Gama foi responsável pela criação da Catedral em Porto Nacional, porque inicialmente, a sede paroquial da cidade era em Monte do Carmo.

Muitas coisas foram suprimidas […], mas sempre foi muito bem celebrada, festejada, cantada por homens e mulheres, por crianças, os pequenos corais, pessoas que tocavam no harmônio, outros instrumentos.
“Monsenhor Jones Pedreira, que nasceu na cidade, estudou no Seminário São José e foi consagrado sacerdote na Catedral de Nossa Senhora das Merces“
A partir desse momento, a devoção da comunidade portuense tomou forma, resultando na festividade religiosa que se iniciava em setembro, concentrava pessoas de diversas origens, como ribeirinhos, do sertão e dos povoamentos vizinhos, unindo a cidade em homenagem à santa. Com a criação da diocese, Nossa Senhora das Mercês tornou-se padroeira de toda a extensão do antigo norte goiano. Só mais tarde, com a divisão dos municípios foram criadas outras quatro dioceses no Tocantins.
O evento, que historicamente contava com novenas, cânticos e diversas atividades, representava não apenas um momento de fé, mas também uma expressão cultural comunitária, quando a missa era pela manhã e à noite o povo cantava as orações.
“Muitas coisas foram suprimidas […], mas sempre foi muito bem celebrada, festejada, cantada por homens e mulheres, por crianças, os pequenos corais, pessoas que tocavam no harmônio, outros instrumentos, tocavam as bandas, tocavam na praça, faziam as retretas depois da novena, quando parava para fazer os leilões, para fazer as atividades, também da festividade, que não eram mais religiosas, mas eram da comunidade em si, que se reunia para fazer a graça da festa, a parte social da festa”, explica o monsenhor.
A tradição, mantida ao longo dos anos, unia a população em um sentimento de despedida ao final da festa, ansiosa para reviver as comemorações no ano seguinte. Hoje ela também conta com a parte social, embora ao final das oito noites de missas. No entorno ou na praça da catedral, os candidatos a rei e rainha vendem quitutes com as suas famílias, ocorrem os bingos, leilões, shows religiosos, além do encerramento, depois da coroação das crianças, no dia da padroeira, 24 de setembro, pela manhã. Assim, a preservação dessas tradições religiosas é essencial para manter viva a identidade cultural de Porto Nacional.
Do outro lado da cidade, a paróquia do Divino Espírito Santo, situada no setor Jardim Brasília, tem um festejo igualmente expressivo. A igreja cresceu à medida que foi conquistando mais fiéis, pelo o interesse da comunidade no trabalho de pastoral, em participar de grupos, movimentos, bem como à frente da festa, que ocorre no galpão junto a sua estrutura inicial.
A assistente social, Aparecida Divina, declara que “a paróquia do Divino Espírito Santo surgiu com muita oração, fé e sabedoria do povo de Deus”. Devota da terceira Pessoa da Santíssima Trindade, exerce a função de secretária da paróquia, sendo uma das coordenadoras da festa, comemorado durante 10 dias.
O festejo do Divino, realizado 50 dias após a Páscoa, é uma manifestação de alegria e fé, contando com novena, levantamento do mastro e coroação. As demais atividades são a alvorada festiva, abre e anuncia a festa durante a madrugada, a esmola geral para arrecadar dinheiro dos fiéis nas ruas em prol da festa, uma caminhada pelo centro da cidade simbolizando a caminhada do povo de Deus e a visita nas casa pela Folia do Divino, levando a palavra aos seus moradores. A celebração encerra no domingo de Pentecoste.
A pandemia trouxe desafios, mas a comunidade permaneceu resiliente, adaptando-se para manter viva a transmissão das missas pela plataforma online. No entando, Aparecida Divina notou uma mudança no nível de participação dos fiéis com a praticidade. “Esses dois anos após a pandemia houve mudança do povo no sentido de […] não participar, acostumar ficar em casa e de lá participar da missa, mas em outros sentidos a festa continua linda e com muita fé do povo”, conclui.
Entre os dias 28 de dezembro e 06 de janeiro, ocorre o festejo de Santos Reis, que comemora a visita dos três Reis Magos ao menino Jesus. A festa tornou-se uma das maiores e mais esperadas da diocese. Sua programação abrange missas todas as noites, quermesses, leilões, bingo e a participação ativa da comunidade. Como de costume, os fiéis da Paróquia dos Santos Reis, situada na região da Vila Nova, são responsáveis por indicar o rei, rainha, reis magos, capitão e rainha do mastro.
A missa sertaneja é uma atração que agrega as raízes da folia no campo com a programação da cidade. A Folia de Santos Reis é formada por devotos dos Reis Magos e foi iniciada pelo Seu João Mineiro, já falecido. Dessa forma, a sua família também faz parte do grupo, repassando o sentimento de devoção.

Os foliões do Divino esperam o dono da casa para o pouso
Da paróquia de Santos Reis, a folia sai dia 1º de janeiro e retorna no dia 6, depois de passar em todas as casas de Porto Nacional presentes no roteiro. O giro ocorre apenas de noite porque era assim que os Santos Reis andavam, com a direção indicada pela luz da estrela guia. Larissa Soares, umas das foliãs, acredita que a prática, somando cultura com devoção, promove valores, como respeito, responsabilidade, família, amor, união e, sobretudo, fé.
Larissa conta que o interesse por essa tradição começou cedo, graças à influência da religiosidade na família. “Desde 1990, quando minha família veio de Goiânia para morar em Porto Nacional. Nos mudamos para o setor Vila Nova, onde existia a capela de Santos Reis, onde hoje é a Paróquia de Santos Reis. Meu pai mineiro, sempre foi devoto de Santos Reis e a folia passava todos os anos em nossa casa. Desde então, sou devota e encantada pela tradição”.
Outro coletivo que cultiva a tradição é o grupo de dança Saia Rodada. Uma das mentoras é Gilma Ferreira, militante do Grupo de Consciência Negra do Tocantins. A equipe, composta exclusivamente por mulheres, preserva e difunde manifestações culturais como a suça, o coco, uma espécie de sapateado forte, comum na região norte e nordeste, e diversos ritmos tradicionais. Através da dança, elas perpetuam valores e ensinamentos essenciais para a comunidade.
Os ensaios ocorrem nas casas das senhoras e algumas vezes no Centro das Crianças Heloisa Lotufo Manzano, espaço da Comunidade de Saúde, Desenvolvimento e Educação (COMSAÚDE), localizado no setor Parque Eldorado. Apesar de ser mais independente, o grupo Saia Rodada participa de ações, oficinas e dança suça nos eventos ligados à instituição.
Essas festas religiosas e manifestações culturais não apenas enriquecem Porto Nacional com sua diversidade, mas também moldam a identidade de um lugar onde o sagrado e o cultural entrelaçam-se, fornecendo um acervo de tradições para as gerações presentes e futuras.
Manifestações artísticas e culturais
O legado das irmãs dominicanas na produção cultural e educativa continua vivo não só no novo Colégio Sagrado Coração de Jesus, como também no Caetanato. O prédio da antiga escola, localizado na Rua do Cabaçaco, no centro histórico, virou sede da COMSAÚDE (Comunidade de Saúde, Desenvolvimento e Educação), uma das iniciativas que impulsionaram o cenário artístico de Porto Nacional.

O antigo Colégio das Irmãs hoje é sede da COMSAÚDE
A edificação, que tem o nome em homenagem à última moradora, a Sra. Caitana Belles, foi doado para a comunidade devido ao seu ideal humanitário e compromisso social. A ONG, fundada em junho de 1969, surgiu em resposta à carência de serviços de qualidade no Norte de Goiás, antes da existência do SUS, prevista na Constituição Federal de 1988. Nessa fase, a COMSAÚDE buscou estimular o desenvolvimento, melhorando as estruturas sanitárias, educacionais, culturais e sociais, além de combater o racismo estrutural na região.
A organização sem fins lucrativos, em parceria com o Ministério da Cultura, o programa Cultura Viva, a Secretaria de Cultura estadual e municipal, e o Movimento Cultural do Tocantins, atua em quatro setores principais, sendo a Saúde, Comunicação e Cultura, Educação e Assistência Social. Entre suas ações, destaca-se o Centro das Crianças, onde atividades de arte, educação e esporte são promovidas, e a seção direcionada a preservar as culturas tradicionais e populares no estado do Tocantins.
Desde 1972, a COMSAÚDE esteve à frente de diversas iniciativas culturais. Luciana Pereira, atual presidente do instituto, celebrou o alcance do trabalho como todo através dos vários anos de atuação. “A Comsaúde é uma das ONGs pioneiras com mais de 5 décadas de atuação nas áreas da Cultura e das ações de desenvolvimento social junto às comunidades periféricas, os trabalhadores rurais e os movimentos de direitos humanos de Porto Nacional”.
A respeito dessas iniciativas, destaca-se o desenvolvimento do artesanato em Porto Nacional, uma vez organizado os artesãos e criado a Associação dos Artesãos e Artesãs, em 1978. O resultado desse esforço foi a notoriedade do artesanato portuense, comercializado em grandes centros, como Brasília, Goiânia e São Paulo. Desse trabalho surgiu a “Feirinha”, local de exposição e vendas de artesanato, além das feirinhas que passaram a acontecer na praça do coreto e outros pontos da cidade.
Outros eventos marcantes incluem a Candeia, um sarau cultural realizado no Caetanato, e a Gincana Histórica “Você Conhece a Tua Cidade?”, que envolve a população na identificação de detalhes de Porto Nacional. Com a chegada de José Iramar, um agitador cultural, as oficinas de teatro foram impulsionadas nos anos 80, resultando na formação de grupos ativos até hoje, como o de teatro “Chama Viva”, funcionando em Palmas, com direção do ator Cícero Belém. Além disso, a cidade viu o início dos Festivais de Música, repletos de composições que a celebravam.
A Semana Cultural, originada pela COMSAÚDE, e o projeto “Ler para Crescer”, incentivando a leitura nos bairros periféricos, aparecem como ações que transcendem os limites da cidade, contribuindo para a formação cultural e educacional da população.
O período em questão também marcou o estabelecimento de eventos como a Via Sacra, coordenada pelo Oidê Carvalho, que envolvia jovens da comunidade e ocorria em frente e nos arredores da Catedral Nossa Senhora das Mercês. O projeto Tambores do Tocantins, iniciado em 1992, desempenhou um papel crucial na preservação da cultura musical tradicional do Tocantins.

O seu idealizador, Márcio Bello, foi surpreendido pela primeira vez com as manifestações tradicionais do estado, em Porto Nacional e Natividade. Os sons de pandeiros, sapateados, caixas tambores e violas o inspiraram a resgatar essa produção regional. “Com a convivência e o aprendizado com os mestres e grupos tradicionais, percebi que em algumas manifestações e elementos importantes, como instrumentos de percussão, estavam se perdendo pela falta de transmissão das técnicas de confecção. Assim, nasceu a ideia do Projeto Tambores do Tocantins. A princípio, como ferramenta de preservação e valorização da cultura e dos saberes musicais tradicionais do Tocantins. Consequentemente, como ferramenta de inclusão social de crianças, jovens, adolescentes e suas comunidades”, explica.
O projeto, ao longo de 31 anos, não apenas manteve viva a tradição dos ritmos típicos, como suça, catira e roda, mas também promoveu fusões com elementos de outras regiões do Brasil.
Atuando nacional e internacionalmente, o grupo contribui para a inclusão social por meio de oficinas permanentes, desenvolvidas em parceria com associações comunitárias, escolas e universidades públicas, e vivências culturais. A sede dos Tambores do Tocantins fica em Porto Nacional, no Centro das Crianças, no setor Parque Eldorado. Também fazem shows, aulas espetáculos e a comercialização de instrumentos, marcando presença em eventos, como feiras e festivais.
“A nossa diferença é essa identidade, os ritmos que são peculiares, os instrumentos que são peculiares, como o tambor de barro. A ideia é trabalhar esses ritmos conversando também com o maracatu, baião, xote e samba. A gente tem trabalhado em algumas misturas, tem o samba com a suça, porque a suça é o nosso samba, é o ritmo tradicional do Estado. E a gente tem isso dentro da nossa música”, explica Márcio.
Esse movimento cultural também viu o surgimento de iniciativas como a Cabaça Cultural, um grupo de artistas e ativistas que buscavam romper o marasmo cultural da cidade. Com realização de saraus, atividades de música, teatro, dança e poesias, o grupo trouxe um frescor à cena cultural.
Por outro lado, o Grupo de Consciência Negra do Tocantins (GRUCONTO), atua na luta contra o racismo e a discriminação racial através da arte e da capoeira. Fundado por Iramar e outros militantes, em julho de 1994, a unidade desempenhou um papel significativo na promoção da igualdade racial e na celebração da cultura afro-brasileira.
A ideia de celebrar o Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro, possibilitou as articulações iniciais em Taquaralto, um bairro da capital Palmas, e na comunidade Quilombola Barra do Aroeira, em Santa Tereza do Tocantins. Posteriormente, a busca pela identidade afro-brasileira, estudo das raízes históricas, políticas e culturais levaram à expansão do movimento, chegando até Porto Nacional.
Gilma Ferreira era professora e ingressou no GRUCONTO em 2011. Na coordenação do grupo, atua nas formações culturais, em rodas de conversa e leitura, como também nas oficinas das bonecas de pano abayomi, que servem para ilustrar as histórias dos reis e princesas africanas. As ações voltados para o gênero feminino inclui os quintais produtivos e o Coletivo de Mulheres Negras e Populares, sob o olhar da professora Luciana Pereira, que se concentra nas mulheres idosas, enquanto as atividades nas escolas focam em rodas de conversa e empoderamento negro.
“Quanto à cultura, eu vejo também que a gente ainda está engatinhando porque nós retomamos o trabalho que o professor José Iramá fazia, mas ele tinha múltiplas atividades, ele fazia teatro, cantava, poesia, enfim, fazia vídeos, filmes e nós estamos ainda começando, reiniciando esse trabalho que ele fez”, relata Gilma sobre o ativista cultural, que faleceu em 2012, e era esposo da então presidente da COMSAÚDE.
O GRUCONTO é filiado aos Agentes de Pastoral Negros (APNs). Algumas das personalidades ligadas ao grupo são o Mestre Timbal com a capoeira, o Mestre Penugem, o cantor e compositor Everton dos Andes, em que seu caminho no mundo das artes começou nos anos 70, através da capoeira, e depois evoluiu para a música.
Além dessas iniciativas, a COMSAÚDE contribuiu para a documentação histórica da região por meio de registros fotográficos. Com cerca de dez mil imagens disponíveis em seus arquivos, a organização da memória visual de Porto Nacional ao longo dos anos.
Voltando às expressões de arte, a atuação da agência de modelos Rage’s Raid é um exemplo disso. O projeto foi criado nos anos 2000, a partir de um desfile do Dia Internacional da Mulher, em que estudantes do Centro de Ensino Médio Professor Florêncio Aires viram a chance de mudar o mundo, investindo nos desfiles baseados em temas sociais. Assim, a estética e cidadania andariam juntas.
Com a missão de trabalhar a autoestima dos jovens participantes, o projeto percorreu diversas escolas estaduais, incluindo o Colégio Sagrado Coração de Jesus, que é particular, e o Instituto Federal do Tocantins (IFTO), no Campus Porto Nacional, divulgando mensagens de cidadania. O trabalho também foi realizado nos distritos Pinheirópolis, Escola Brasil e Luzimangues.
Neto Ayres, à frente da agência, utiliza a moda como instrumento de transformação social. “Cada ano era escolhido um tema social a ser abordado, nosso palco era as escolas. Tínhamos a ideia principal da estética com cidadania, que até hoje vem sendo trabalhada nesses 20 anos de projeto, ajudou vários jovens a se encontrarem nos seus objetivos de vida, se tornando uma pessoa mais consciente do mundo”, conta.
Manoel Batista, presidente e coreógrafo da Quadrilha Junina Fulô de Mandacaru, evidencia a resistência da quadrilha, única em Porto Nacional. Criada em 2017, por um grupo de jovens apaixonados pela dança folclórica, a mesma enfrentou desafios, pois não tinham preparo, figurinos ou apoio financeiro, mas com o passar do tempo ela cresceu, ganhou reconhecimento e se tornou uma tradição junina na cidade.
O trabalho cultural também se estende a uma ação social, trazendo ao público mensagens de reflexão através de seus espetáculos. Hoje, com mais de 50 integrantes, a Fulô de Mandacaru conta com o apoio do clube da AABB, onde ocorrem os ensaios, e da comunidade para manter viva a tradição das quadrilhas juninas, com raízes no nordeste.
“O que também nos move, é saber que estamos perpetuando uma cultura tradicionalmente brasileira e ainda, com conceitos e mensagens de auto reflexão para nosso público, pois, cada espetáculo leva uma mensagem social a todos que assistem. A Fulô além de um trabalho cultural, é uma ação social portuense”, enfatiza o presidente da quadrilha.
O foco dessas iniciativas artísticas não se limita apenas ao entretenimento, mas também à promoção de mensagens sociais e reflexões sobre a realidade local e nacional. O engajamento em temas, como igualdade racial, autoestima e preservação cultural evidencia a interseção entre arte e responsabilidade social.
Dessa forma, tais manifestações, ancoradas em instituições como a COMSAÚDE, projetos como Tambores do Tocantins, Rage’s Raid e a Quadrilha Junina Fulô de Mandacaru, não apenas enriquecem a vida cultural de Porto Nacional, mas também são apresentadas para a construção de uma identidade coletiva única e resiliente ao longo das décadas.
O papel das instituições, líderes culturais e órgãos governamentais torna-se crucial para sustentar e ampliar esses esforços. Investimentos em educação cultural, apoio financeiro e reconhecimento público podem fortalecer ainda mais esse cenário cultural. Como testemunhas e participantes dessa história, cada um é capaz de contribuir para a continuidade desse legado, moldando o futuro de Porto Nacional de forma única.
Desafios e novos caminhos de investimento
Como em outros locais, a cultura de Porto Nacional revela a diversidade de um povo e carece de recursos para continuar a sua produção. A falta de incentivo costuma ser a principal queixa da classe artística e atual questionamento dos moradores, uma vez que a cidade contemplada com o título “capital da cultura tocantinense” ainda deveria refletir tal posição.
“Não temos investimentos por parte do Município ou Estado, há uma ausência de políticas públicas e apoio a iniciativas semelhantes à do projeto Tambores do Tocantins. A manutenção das nossas atividades, do projeto, sempre foram garantidas por agentes e entidades, ONGs do Brasil e do exterior, e através de editais públicos e privados”, relata Márcio Bello, idealizador do grupo de música que resgata os sons mais tradicionais de Porto Nacional e Natividade.
Em contrapartida, a Secretaria Municipal da Cultura e do Turismo comunica que o investimento na área ocorre pela realização do calendário de eventos amparados por leis. As verbas destinadas a isso vêm do que é arrecadado no município, bem como das buscas de recursos na esfera estadual e federal. Assim, as emendas parlamentares desses representantes ajudam a abranger essas festividades.
Neste ano, o Ministério da Cultura procurou reverter esse cenário, publicando o novo Decreto de Fomento à Cultura (11.453/2023), que regulamentou a principal norma de incentivo à área, a Lei Rouanet. Nele, também foram dispostas algumas orientações sobre as Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, visto que a primeira funcionou em 2020, durante o mandato anterior, como auxílio financeiro aos profissionais do ramo afetados pela pandemia de COVID-19.
As recentes medidas procuram garantir verba para democratizar o acesso, a manutenção dos espaços e a produção audiovisual e cultural feita pelos próprios artistas. Para o compositor portuense, Everton dos Andes, a cultura nunca foi prioridade para os governos do país até a chegada da pandemia e o sucesso da primeira Lei Aldir Blanc. “Então, hoje a gente pode dizer que nós temos uma política pública de cultura no Brasil, que são as leis Aldir Blanc, a lei Paulo Gustavo e o Sistema Nacional de Cultura, que vai normatizar e regulamentar a distribuição e aplicação de recursos de políticas públicas para fomento da cultura no Brasil inteiro”.
O Tocantins recebeu cerca de 41,78 milhões de reais dos 3,8 bilhões repassados pelo Governo Federal por meio da Lei Paulo Gustavo, buscando atender a diversidade de manifestações artísticas e culturais em todo o país. Porto Nacional obteve o quarto maior repasse entre os municípios tocantinenses, com 461 mil reais destinados à promoção cultural através de editais, premiações e chamamentos públicos, momento em que os selecionados vão executar os seus projetos.
As oitivas sobre a Lei Paulo Gustavo ocorreram com a participação dos artistas e da sociedade civil. Segundo a Secretaria da Cultura e do Turismo, o interesse do público resultou em 105 inscrições de projetos culturais assim que lançaram os editais, incluindo Porto Nacional e seus distritos. O ano de 2024 promete novos trabalhos impulsionados pelos recursos da Lei Aldir Blanc 2, e há expectativas de que o município estabeleça um fundo da Cultura para divulgar mais editais.
Everton dos Andes também compartilha sua alegria e esperança para os demais fazedores de cultura. “O atual governo vem desenvolvendo, tem dado todo apoio a essas novas políticas, têm lançado uma infinidade de editais, que artistas no Brasil inteiro podem captar recursos, eu mesmo já tive a felicidade de ser contemplado com esses editais, tanto na lei Aldir Blanc, como na lei Paulo Gustavo agora, […] e isso vai permitir que a gente desenvolva ao longo do ano as nossas atividades e faça com que a gente tenha perspectiva, […] que não vai ser esse ou aquele governo que vai interferir porque são políticas garantidas por lei, não são eventos”, concluiu o artista.
As recentes leis específicas possibilitaram um aumento nos investimentos no setor cultural. O sucesso dessas medidas dependerá de como promover a diversidade de participantes e facilitar o acesso às mais diversas manifestações culturais em Porto Nacional.
Abaixo imagens das fachadas e dos principais eventos culturais de Porto Nacional
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